Este ano, completam-se 30 anos da publicação da Lei nº 8.929/1994 que instituiu o uso da Cédula de Produto Rural (CPR) como uma alternativa para o financiamento do setor agropecuário até tornar-se o título de crédito mais utilizado para fomentar a produção agrícola no país. Quem levou a ideia para o então ministro da Fazenda da época, Fernando Henrique Cardoso, foi Roberto Ricardo Barbosa Machado, mais conhecido como Bob. Lá, em agosto de 1993, Bob era funcionário do Banco do Brasil, onde trabalhou por mais de três décadas exercendo os cargos de diretor de Crédito Rural, consultor técnico da Presidência, de chefias de departamentos, gerente de agência e chefe de Carteira Agrícola. Ele dedicou boa parte da vida à criação e à implementação da CPR. “Foi muito estimulante participar dessa evolução do crédito rural”, lembra com orgulho.
Bob conta que, no período que denomina de “época de ouro” no setor, o Banco financiava os produtores com recursos ilimitados, com juros subsidiados e apelos governamentais do tipo “plante que o João garante”. O governo financiava o plantio, comprava a produção, carregava os estoques e vendia tudo a preços subsidiados, ações que viabilizaram a colonização dos estados do Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás. “A produção era desproporcional ao volume de crédito aplicado no setor, contribuindo para o endividamento dos produtores rurais”, cita Bob.
Em 1986, iniciou-se a “época de crise” com concessão limitada de crédito rural ao orçamento governamental, eliminação dos subsídios nos empréstimos à agricultura, vinculação dos empréstimos e da Política de Garantia dos Preços Mínimos (PGPM) ao orçamento da União, redução dos produtos amparados pela PGPM e indução da comercialização via mercado através das Bolsas de Mercadorias. Como resultado dessa política de crédito, houve uma inadimplência generalizada do setor, da qual Bob lembra bem. “No período da busca de alternativas para financiamento ao setor, nos deparamos com problemas. Produtores com financiamento em banco haviam vendido parte da produção às tradings e empresas de insumos, ocasionando em um impasse para saber quem registrou primeiro o financiamento ou compromisso de compra e venda do produto”, conta.
Naquela época, eram feitos os chamados contratos de compra e venda a termo com base da Associação Nacional de Exportadores de Cereais (Anec). “Como eu tinha trabalhado muito tempo com crédito rural, principalmente na financiamento aos produtores através do contratos de empréstimos e, com a criação das Cédulas de Crédito Rural, através do Decreto-Lei 167/1967, eu pensava que a gente poderia ter um título de crédito confessório, endossável, com a obrigação de entrega do produto na colheita e que incorporasse as garantias no próprio instrumento, porque nos contratos de compra e venda a termo, caso fosse necessária a inclusão de uma hipoteca, por exemplo, deveria se fazer uma escritura pública no Cartório de Títulos e Documentos e depois registrar do Cartório de Registro de Imóveis.
O Banco do Brasil abraçou a ideia apoiada pelo seu então presidente, Alcir Augustinho Calliari e, aos poucos, conta Bob, mais pessoas foram sendo envolvidas. O mesmo aconteceu com a Bolsa de Valores de São Paulo e outros setores do mercado e, com isso, a iniciativa foi ganhando forma. Antes de se apresentar a ideia para o FHC, foram realizadas diversas reuniões com empresas de insumos, tradings e outros agentes da cadeia produtiva enquanto, no banco, foi criado um grupo de trabalho.
CARTA BRANCA DO FHC – Bob lembra que houve uma certa resistência dos agentes da cadeia em relação ao título no início do seu uso. “Estar no Banco do Brasil ajudou muito e, quando apresentamos a ideia para o Fernando Henrique com toda argumentação e transparência, ele gostou e disse ‘vamos tocar o projeto pra frente’”, relembra. Após a aprovação do título por parte do ministro da Fazenda, Bob ainda pôde acompanhar a elaboração do Projeto de Lei pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e de participar das discussões do projeto para a criação da CPR na Câmara e no Senado. A aprovação da Lei 8.929 – na íntegra – aconteceu no dia 22 de agosto de 1994 e, a partir daí, Bob, coordenou a implantação do Projeto CPR no Banco do Brasil. E foi assim que surgiu a Cédula de Produto Rural, um título de crédito com a obrigação de pagamento em produto ao credor do papel na data do vencimento.
MODERNIZAÇÃO DA CPR – Ao longo dessas três décadas, desde que foi implementada no agro brasileiro, o título se modernizou, acompanhando os avanços do agro. “Lá atrás, quando você emitia uma CPR física, era necessário pegar o título e levá-lo para o cartório de registro de imóveis para registrar as garantias nele incorporadas, o que levava dias”. Hoje, com a digitalização dos cartórios, esse processo é bem mais rápido, bem como os registros das CPRs em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil (Bacen). Na moderna ferramenta da BBM, por exemplo, criada há cinco anos, é possível realizar esse processo em menos de cinco minutos, tudo de forma online.
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ALGUMAS CURIOSIDADES SOBRE O TÍTULO:
CPR de leite
A primeira CPR emitida no Brasil foi estruturada pela Superintendência do Banco no Rio de Janeiro por uma CPR de entrega de leite “in natura” pela Cooperativa de Itaperuna RJ. A disseminação do título ocorreu principalmente no mercado do café. Hoje, o instrumento é amplamente utilizado em praticamente todas as culturas, com mais ênfase nos grãos, como soja e milho, incluindo a CPR Verde focada em pagamentos por serviços ambientais. Na época, Bob pensava em uma “CPR Florestal”.
Outras CPRs
No meio do caminho, surgiram antes da CPR que nós conhecemos hoje, outras modalidades do título, a chamada de CPR financeira, que interessava especialmente na troca por insumos. Os títulos eram vendidos em leilões de mercadorias de produtores rurais em um centro criado em Brasília (DF), muitos deles comprados pela Bolsa Brasileira de Mercadorias, o que levou a BBM a absorver muitas das antigas Bolsas.
CPR na Ucrânia
Depois dos primeiros resultados positivos com o título no Brasil, Bob foi convidado pelo governo da Ucrânia para ir até lá fazer uma apresentação ao Banco Mundial em um evento com corretoras russas e ucranianas e fundos de investimentos. “Era 1994, alguns dias antes do Natal, estava muito frio, mas valeu a pena. Após a reunião, o título foi submetido ao Congresso Ucraniano e depois aprovado para uso naquele País aprovado para ser implementado na Ucrânia”. Depois, Bob ainda falou da CPR na Argentina, Chile e em El Salvador, em eventos do Banco Mundial.