Várias perguntas surgem das mudanças no Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Pessoa Física (IRPF) propostas pelo governo federal no PL 2337/21 de final de junho e alteradas na Câmara de Deputados em setembro. A carga tributária vai diminuir ou ser melhor distribuída? Quais seus efeitos nas empresas e nas contas públicas?
As perguntas sobre o IRPJ não surpreendem, porque o imposto arrecadou mais de R$ 170 bilhões em 2020 e pode passar de R$ 200 bilhões em 2021. Perto da metade dessa arrecadação vai constitucionalmente para Estados e municípios.
A Câmara aprovou a queda da alíquota do IRPJ dos atuais 15% para 8%, mantendo a alíquota adicional de 10% para os lucros que ultrapassem R$ 20 mil mensais. Em contrapartida, a distribuição de rendimentos da empresa através dos Juros sobre Capital Próprio (JCP) desapareceria, eliminando uma dedução do lucro tributável existente desde 1995. Os cálculos da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado apontam que a arrecadação do IRPJ cairia em cerca de R$ 50 bilhões ao ano com a queda da alíquota, e engordaria em R$ 6 bilhões em 2022 e em R$ 13 bilhões a partir de 2023 com o fim do JCP.
A proposta de mudança do IR também prevê a tributação em 15% dos dividendos, hoje isentos. Mas, nem toda distribuição de dividendos seria taxada, sendo mantida isenta aquela de rendimentos das empresas no Simples Nacional e das empresas sob lucro presumido com faturamento de até R$ 4,8 milhões. Também seriam excetuados os rendimentos pagos a integrantes do mesmo grupo econômico ou operando sob o regime de patrimônio de afetação, e aqueles a entidades de previdência complementar ou imunes por força constitucional.
Considerando as exceções à tributação dos dividendos e as ações que as empresas mais atingidas pelas mudanças tomariam para diminuir o pagamento de impostos, a IFI estima que a tributação dos dividendos pagos no Brasil poderia trazer R$ 9 bilhões ao governo em 2022 e R$ 30 bilhões a partir de 2023. Segundo a Receita Federal, tributar os dividendos pagos no exterior (remessa de lucros) geraria outros R$ 3 bilhões em 2022 e R$ 8 bilhões a seguir.
As contas acima indicam uma perda de receita do governo de R$ 32 bilhões em 2022 e neutralidade na arrecadação nos anos seguintes. Mas, a redução do IRPJ só vai ocorrer a partir da instituição do adicional de 1,5% da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) em benefício dos estados e municípios. Esse aumento, que não afeta o garimpo artesanal, levantará R$ 6 bilhões, segundo a IFI. O que deixará o governo no lucro com as mudanças propostas.
Considerando que a alíquota cairá para todas as empresas fora do Simples e que a distribuição de dividendos por muitas delas continuará isenta, a neutralidade na arrecadação pede que a carga tributária suba para as empresas cujo dividendo será taxado, e ainda mais para aquelas que perderam a dedutibilidade do JCP.
A troca do IRPJ pelo CFEM deve ter um impacto heterogêneo e talvez surpreendente. Ao compensar a eventual queda do valor da quase metade do IRPF transferida para os Entes mais pobres (via FPE e FPM) tributando a mineração, ela tende a prejudicar estados como Pará que arrecadam pouco IRPF e têm muita mineração, em favor daqueles que tem uma economia mais diversificada.
A Câmara também propôs reduzir a alíquota da CSLL, desde que certas vantagens tributárias fossem cortadas, o que também pode aumentar a carga tributária, mesmo que a arrecadação da CSLL caia em até R$ 11 bilhões ao ano como estimado pela IFI.
A CSLL é uma contribuição social parecida ao IRPJ, mas cuja receita é apenas da União. O texto da Câmara condiciona a redução da sua alíquota em um ponto percentual à descontinuação do crédito presumido concedido aos produtores e importadores de medicamentos e à tributação de numerosos produtos farmacêuticos e químicos usados na área da saúde. A primeira mudança renderia R$ 10 bilhões ao governo e a segunda R$ 4,5 bilhões, segundo a Receita Federal. Uma terceira, tributando o gás natural usado na produção de energia elétrica, traria mais R$ 1 bilhão. As três condições juntas fariam a carga tributária subir R$ 16 bilhões, acima do alívio dado pela eventual queda na alíquota da CLLS. Elas devem também impactar a inflação dos remédios e da luz elétrica ao, por exemplo, adicionar até 13% de imposto sobre o custo dos medicamentos ou GNL importados.
O projeto de lei também prevê a atualização da tabela do imposto de renda da pessoa física (IRPF), o que não ocorria desde 2015. Essa atualização procura compensar de tempos em tempos o aumento do imposto pago quando os salários sobem com a inflação e as faixas do imposto continuam fixas. Apesar de estar no mesmo projeto, ela não é uma mudança estrutural como as mudanças das alíquotas do IRPJ, tributação do dividendo, etc.
A Lei de Responsabilidade Fiscal não exige medidas específicas de compensação à atualização da tabela do IRPF exatamente porque a arrecadação do governo também tende a subir com a inflação, neutralizando o impacto fiscal da correção das faixas. No projeto atual, aliás, o ajuste devolve ao contribuinte menos do que a sua perda por conta dos mais de 30% de inflação do IPCA acumulados desde 2015.
Apenas a primeira faixa de renda da tabela do IRPF subiu perto da inflação, enquanto as faixas mais altas foram ajustadas em apenas 13%. Assim, quem ganha 3 salários mínimos continuará pagando mais imposto em termos reais do que em 2015.
A carga tributária sobre muitos trabalhadores também subirá em relação a 2015 porque o teto do desconto padrão de 20% aplicável à renda tributável encolheu em 37%. Ele passou de R$ 16.154,34 para R$ 10.563,60, também afetando quem recebe mais de 3 salários mínimos. Por exemplo: um assalariado que recebe 6 salários mínimos irá pagar R﹩1.600,00 (1.5 salários mínimos) a mais de imposto por ano, além de não ter sido beneficiado pela atualização das faixas do imposto.
As perdas com a correção da tabela do IRPF e redução do desconto padrão valem principalmente para quem tem renda do trabalho, como salário de carteira assinada ou aposentadoria do INSS, em contraste com quem opera como “empresário”, inclusive terceirizado. Por exemplo: quem recebe um salário de R$ 10 mil por mês ou o teto da aposentadoria do INSS pagará R$ 1,5 mil a mais de imposto por ano. Porém, nada muda para o sócio de uma empresa do Simples, e o sócio principal de uma empresa de serviços profissionais com faturamento de R$ 3 milhões sob lucro presumido poderá receber um bônus de R$ 65 mil com o texto atual da Câmara.
No balanço, as mudanças do IR trazidas para o Senado aumentam a carga tributária e têm efeito incerto sobre o investimento e a eficiência da economia. Elas devem onerar o trabalho assalariado sob a CLT em relação a outros arranjos, como, por exemplo, a provisão de serviços profissionais que exijam formação técnica ou acadêmica por sócios de uma empresa sob lucro presumido e receita de até R﹩4,8 milhões.
O efeito no investimento é ambíguo porque tornar a distribuição de dividendos mais cara pode estimular a substituição de capital por dívida. O resultado seria a maior alavancagem das empresas, sem aumentar o investimento, mas diminuindo a resiliência empresarial em um ambiente macroeconômico volátil.
A proeminência no projeto de dispositivos lidando com eventual distribuição disfarçada de lucros (toda a seção II do capítulo II) e outros possíveis artifícios sugere o aumento de ineficiências e contenciosos na esteira da tributação dos dividendos.
O PL inclui ainda diversas medidas operacionais cujos efeitos não têm sido discutidos em detalhe. A pretendida uniformização da base de cálculo do IRPJ e CSLL (seção V, capítulo III), por exemplo, pode simplificar a vida das empresas e merece destaque por ajudar a evitar que o Brasil vá na contramão da decisão da OCDE de impor um piso de 15% para tributação do lucro das empresas. Mas ela pode também alterar a carga tributária, o que precisa ser melhor analisado.
O impacto da tributação dos medicamentos nos idosos também merece ser mais estudado. Assim como o efeito da mudança do CFEM na economia de estados onde a mineração em grande escala é importante e passará a ser mais onerada.
São talvez considerações como as esboçadas acima, além da dúvida de que pela ótica da LRF a tributação dos dividendos seja necessária como medida de compensação à correção imediata dos benefícios do Bolsa Família, que motivaram o relator do projeto no Senado a dizer que sua votação requer tempo para que a sociedade entenda e avalie corretamente os impactos de mudanças que são amplas e complexas.
Joaquim Levy é ex-ministro da Fazenda e atual diretor de Estratégia Econômica e Relações com os Mercados do Banco Safra.
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