Na minha distante infância numa fazenda perdida nos confins de Minas Gerais, acompanhava o meu pai Sebastião lendo a bíblia com enorme dificuldade na sua pouca leitura. Iluminado por uma lamparina e sentado no rabo do fogão de lenha, pra enfrentar aquele frio enorme. Nos meus quatro anos de idade. Eu me encantava com aquelas palavras estranhas que ele lia no livrão antigo. Uma dessas palavras estranhas era o “pocalipe” que ele lia. Falava que era o fim do mundo e o descrevia do modo que ele entendia. Muito fogo, crateras se abrindo nos engolindo. O Diabo, fedendo a enxofre, com um tridente espetando nas nossas costas e nos empurrando pro seu inferno ardente. Isso e as estórias de assombração assustava as minhas noites infantis.
Quis a vida que eu estivesse vivo décadas depois, já sem a presença física de meu pai, pra assistir à passagem do seu “pocalipe”. Vivíamos o distante ano de 1948. Hoje em 2020, o “pocalipe” está acontecendo noutra linguagem e em cenários inconcebíveis pra pouca leitura de meu pai, que nos deixou em 2015, aos 90 anos.
Ao longo do tempo acabei me interessando por esses assuntos de natureza espiritualista e associei-os à leitura da História. Acabou resultando numa salada interessante.
Na verdade não se tratava do fim do mundo como meu pai entendia. Mas no fim de um mundo com o seu modo de viver. 2020 foi mesmo isso. O ano começou morno e sem perspectivas animadoras e nem desanimadoras. Morno, até. Em março o Diabo que meu pai enxergava, desceu com o seu tridente que acabou conhecido como “corona vírus”. Junto, a doença que ele trazia, a “covid 19”. Sem enxofre e nem tridente. Só o pavor da morte coletiva trazida por um vírus que saiu do coração da China e alcançou o mundo inteiro. Sem perdão. Países ricos e pobres. Gente rica e gente pobre. Mudou todos os sistemas do viver construído desde sempre.
Associou-se à tecnologia que rege a vida moderna e deu um golpe de 360 graus no planeta. Foi o “pocalipe” na sua melhor descrição!
2020 se encerra melancólico, mas profundamente didático. Nos ensinou valores antigos e mal-conservados. Nos ensinou valores novos que são bem mais simples e mais próximos de heranças do tempo em que sentíamos a felicidade associada à simplicidade.
O leitor deve estar se perguntando como pretendo encarar 2021, depois de ler estas linhas. Espero 2021 depois do “pocalipe”. Sem expectativas de impor a vida pra mim mesmo. Ela virá e ditará o modo como quer ser vivida. Com certeza claríssima, será baseada em maior simplicidade.
Será um longo aprendizado, bem maior do que os 365 dias do ano. Todos aprenderemos muito ao longo de 2021. Em 2020 aprendemos a desapegar de estilos de vida. Em 2021, aprenderemos a conviver conosco mesmos. Nada mais difícil do aprendermos a conviver conosco, olhando nos próprios olhos…!
Onofre Ribeiro é jornalista em Mato Grosso