Mesmo ao considerar o dinâmico mecanismo e o incontrolável comportamento da atmosfera, parece que o clima quer sempre colocar à prova a aptidão funcional do sistema hidrotérmico brasileiro. Convivemos com desequilíbrios hídricos cíclicos que, somados à gestão complexa desse sistema, deveriam conduzir ao permanente aperfeiçoamento do planejamento; é, contudo, oportuno lembrar Debeir et. al. (1993) que arrematam “…não existe um modelo único de desenvolvimento energético, nem soluções milagrosas…”.
O país não tem passado incólume a estas periódicas crises hídricas e energética também, como a de 2001. Fardos financeiros gigantescos são deixados ao longo do caminho para o consumidor de eletricidade carregar nas costas, além do que um descompasso entre as políticas ambientais, de recursos hídricos e energéticas tem prejudicado sobremaneira o planejamento do setor que possa incorporar flexibilidade frente às forças de pressão exógenas, e lidar com a graduação dos efeitos ambientais e com a análise equilibrada dos fatores socioeconômicos. A lição do apagão de 2001 por falta de água nos reservatórios das usinas hidrelétricas reacende o questionamento sobre a segurança do atendimento à demanda energética no Sistema Interligado Nacional e quanto à avaliação das variáveis envolvidas, entre outras, as que consideram a carga do sistema, a dinâmica das bacias hidrográficas e os despachos das usinas hidro e termelétricas.
No âmbito do sistema infraestrutural o setor pode estabelecer um planejamento em uníssono com o dos recursos hídricos, por bacias hidrográficas (DORILEO, 2009) apoiado pela Política Nacional de Recursos Hídricos em vigor e pela implantação da Política Nacional de Irrigação, criada pela lei nº 12.787 de 11 de janeiro de 2013. Ambas fortalecem a necessidade de um Planejamento Integrado de Recursos – PIR por bacias hidrográficas no Brasil, levando-se em conta o uso sinérgico e múltiplo da água pelo setor elétrico, pela ocupação regional, para o abastecimento humano, pelo setor agropecuário, pela indústria e pelos sistemas de tratamento de esgoto. As questões são indissociáveis.
Esta necessidade está muito clara quando avaliamos a segurança do suprimento (energia e potência disponibilizada ao sistema), o comportamento do mercado e o declínio da garantia física (Relatório do Grupo de Trabalho da Modernização do Setor Elétrico) (MME, 2019). Correia et. al (2021) comentam a justificação de uma reforma regulatória, segundo o contexto atual de expansão e energia de reserva, que “nos últimos anos vem se conformando um diagnóstico, amplamente consensual, que aponta a necessidade de ajustes no modelo regulatório atual do setor elétrico brasileiro”. No cenário de transformação, a articulação do planejamento dos recursos energéticos e hídricos, através dos Planos de Bacias, com as políticas energéticas de diversas vertentes, de desenvolvimento e de meio ambiente, de recursos hídricos e com o sistema de regulação passa a orientar a estratégia da expansão sob aspectos que admitem, numa vinculação de procedimentos, a abrangência da questão dos recursos, como os usos múltiplos da água, as previsões de demanda de energia e de água, os estudos de suprimento e alternativas de precificação de energia e de água, a conservação dos recursos etc., com a participação direta dos Comitês de Bacias Hidrográficas. Um dos efeitos naturais de grande alcance também desta abordagem é que se permite elaborar um planejamento indicativo por agregados de municípios pertencentes àquela região geográfica, valorizando a forma descentralizada, como se faz com os recursos hídricos.
Nas condições do planejamento centralizado vigente, a evolução da capacidade a ser incorporada no Brasil, entre 2026 e 2030 (Figura 1), prevista na ‘Configuração para expansão indicativa de referência do PDE 2030’, aponta para um modelo de gestão dos recursos energéticos na composição da matriz elétrica que considera, corretamente, o crescimento das fontes eólica, solar fotovoltaica e outras renováveis. No entanto, infere-se certa resignação com uma temerária redução de projetos hidrelétricos com reservatórios, ainda que o ‘Resultado final da expansão de referência 2026-2030’ tenha demonstrado aderência com os requisitos do sistema, ante um crescimento de 11,0% da intensidade elétrica da economia (de 0,141 MWh/R$ 1.000,00 para 0,156 MWh/R$ 1.000,00) neste decênio (PDE 2030).
O ambiente da modelagem técnico-econômica, insatisfatório, do planejamento da expansão propicia a identificação de pontos de melhoramento das estratégias efetivas, utilizando-se modelos multidimensionais agregados (econômicos, de expansão da oferta, de GLD, e sistemas de georreferenciamento), associados aos modelos de recursos hídricos, tendo em conta a sinergia entre energia e água, e estabelecendo critérios específicos sob a ótica do PIR por bacias hidrográficas. Nesta configuração, os agentes dos setores hídrico e energético devem ajustar-se a uma visão coletiva, sob um arcabouço legal e regulatório, pressupondo as esferas estatais interagindo com a sociedade civil, onde os estudos de inventário e de viabilidade dos empreendimentos de geração elétrica estarão compreendidos tanto entre os economicamente mais atraentes como os de interesse estratégico, e, ainda, compondo-se com os planos de recursos hídricos das bacias em que estarão localizadas as usinas.
Desta forma, insta o setor elétrico realizar a reação de síntese ao integrar o planejamento energético ao planejamento dos recursos hídricos, simultaneamente. Isto significa incorporar dimensões globais e particulares dos sistemas energéticos e hídricos de forma integrada, considerando que todos os envolvidos devam ter ganhos específicos como uso de energia renovável, eficiência energética, segurança hídrica, bem-estar com o uso da eletricidade e da água, conservação de recursos primários e preservação do meio físico e biótico.
Aliada aos pressupostos da transição energética e à modernização do setor elétrico e suas inovações, a menção de Gannoum (2021) ajuda a consubstanciar uma questão a ser tratada e resolvida atualmente no Brasil: “… Nosso desafio não é, portanto, gerenciar escassez de recursos naturais limpos, como é o caso de tantos países que precisaram investir bilhões em políticas de desenvolvimento de renováveis. Nosso desafio é gerenciar sua abundância para produção de energia, tirar de cada um deles o melhor possível, protegendo a natureza e trazendo retornos sociais e econômicos para a sociedade”.
A dinâmica do sistema elétrico brasileiro tem buscado superar suas adversidades com alternativas técnicas, econômicas e regulatórias nem sempre plausíveis, e não tem imposto limite ao ‘determinismo’, próprio dos sistemas energéticos, quando está circunscrito em uma crise, produzindo um efeito de restrição energética e de custos econômicos e sociais crescentes. Pela complexidade, transições e compensações que permeiam o setor elétrico, o PIR por bacias hidrográficas constitui-se numa resposta importante para questões essenciais de infraestrutura através da busca do equilíbrio entre o meio ambiente e os interesses econômicos.
Referências
Brasil. Ministério de Minas e Energia. Relatório do Grupo de Trabalho da Modernização do Setor Elétrico. Portaria MME nº 187/2019.
Brasil, Ministério de Minas e Energia, Empresa de Pesquisa Energética. Plano Decenal de Expansão de Energia 2030 / Ministério de Minas e Energia. Empresa de Pesquisa Energética. Brasília: MME/EPE, 2021.
Correia, T. B., Porto, N. A., Correia, P. B. Garantia de Suprimento na Terceira Reforma Regulatória do Setor Elétrico Brasileiro. Revista Brasileira de Energia | Vol. 27, Nº 3, 3º Trimestre de 2021 – Edição Especial. DOI: 10.47168/rbe.v27i2.638.
Debeir, J.C., Deléage, J.P., Hémery, D. Les Servitudes de la Puissance: une histoire de l’energie. Tradução de Sérgio de Salvo Brito. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1993. 448p.
Dorileo, I. L. Planejamento integrado de recursos energéticos e hídricos em bacias hidrográficas: proposta metodológica e aplicação à bacia do Rio Cuiabá-MT. 2009. Campinas, SP: UNICAMP. Tese (Doutorado).
Gannoum. E. Energia Eólica No Brasil: Os Motivos do Sucesso e o Futuro dos Nossos Bons Ventos. Revista Brasileira de Energia | Vol. 27, Nº 3, 3º Trimestre de 2021 – Edição Especial. DOI: 10.47168/rbe.v27i3.641.
Ivo Leandro Dorileo é Coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Planejamento Energético da Universidade Federal de Mato Grosso e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Planejamento Energético.
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