O Savory Institute, no Novo México, EUA, criado por Allan Savory, trabalha, há décadas, entre outras frentes, para restaurar a biodiversidade global, deter as mudanças climáticas, recuperar a terra esgotada para a agricultura e no combate à fome e à pobreza no mundo. Os métodos utilizados são o do ensinamento e prática da Administração Holística e da Tomada de Decisão Holística. Com essa prática, por exemplo, durante a crise de energia do fim da década de 1970, a fazenda Mason Dixon, na Pensilvânia, foi pioneira no uso de biodigestor de esterco de vacas e novilhas, produzindo metano e eletricidade para todas as suas necessidades, estabelecendo um “equilíbrio simbiótico entre os animais e a produção de energia”. E assim esta abordagem de autoprodução sustentável tem contribuído para promover o bem-estar humano e a saúde dos ecossistemas.
O Brasil tem avançado muito em relação ao aproveitamento de suas fontes energéticas e, melhor, na universalização do atendimento à população com energia elétrica. Mas, como lembram Gomes, Saath e Paiva (2020, in XII CBPE), a realidade é a de “pobreza energética” no país, definida de forma genérica pelo World Energy Assessments, das Nações Unidas, como “a impossibilidade de escolhas suficientes para acesso adequado, acessível e de confiança de serviços energéticos para gerar um desenvolvimento humano e apoiar a economia”. De acordo com o IPEA (2019), um quarto da população brasileira está em situação de pobreza e com dificuldades, portanto, para ter acesso à eletricidade e para pagar as suas contas.
Nestas circunstâncias, convivemos, de fato, com um problema socioeconômico que merece uma profunda e revitalizada política pública na área energética sobre tarifação, modalidades tarifárias e consumidores baixa renda, lado a lado com as políticas econômica e social. Pode-se iniciar pelo setor residencial, que consome 25,0% de toda a oferta elétrica do país, mas, onde há disparidades significativas de demanda entre classes de consumidores e tarifas se considerarmos variáveis como a renda, concentração do número de consumidores por região do país, padrões de consumo, indicadores de estilo e hábitos de vida e uso de equipamentos, e, de um estudo inédito de Souza, Mattos e de Almeida (2020, UFJF), as elasticidades-preço e renda estimados a partir dos efeitos espaciais na demanda de eletricidade, entre as unidades da federação.
Existe, ainda, um desafio extraordinário, que se refere à isonomia na prestação do serviço entre os consumidores. Com as transformações no setor elétrico cada vez mais agudas, as políticas de eficiência energética devem desempenhar o papel de equilíbrio, ganhando significativo protagonismo entre os padrões de consumo mais restritivos. Se existe um indicador essencial de redução de pobreza, este é o acesso à eletricidade, e, neste aspecto, amparar os que não tem eletricidade, ou não fazem uso dela suficientemente, com eficiência energética, é reconhecer e reclassificar estes consumidores no âmbito social e humano.
Estamos, deste modo, numa seara onde “o bem público” eletricidade deve produzir “bem-estar”, indiferente às desigualdades, à pobreza, à segurança econômica, etc. Aliás, o objetivo principal da privatização é preservar o “interesse público”. Definir a eficiência energética como bem ou interesse público demonstra, assim, o recurso da não-rivalidade com o fornecimento de eletricidade, garantindo benefícios a vários consumidores, reduzindo a demanda latente por energia elétrica. Isto, claro, vale para a atual situação entre consumidores e prossumidores.
Muitos países experimentaram a promoção da equidade inter e intra-classe de consumidores através de processos de reestruturação de sua indústria de eletricidade. Os modelos adotados obtiveram resultados satisfatórios com prática de tarifas de cunho assistencial para consumidores de baixa renda seguida de esforços para conservação de energia, mecanismos de formação de tarifas com base em auditorias de custos e análises comparativas (benchmarking), implementação de estratégias de serviços de conservação de energia pelas concessionárias, incentivos para aumentar o interesse em eficiência energética e para aquisição de equipamentos mais eficientes.
Na questão do equilíbrio entre consumidores no que tange aos benefícios e tarifas, a geração distribuída e a eficiência energética devem ser tratadas com pesos equivalentes e no mesmo pacote de oportunidades, inclusive num contexto em que o próprio setor público deve impor e determinar a segmentação do potencial de eficiência energética entre os atores que a sociedade considera passível de utilizar fundos públicos ou privados como as concessionárias, o setor público, o mercado privado e os próprios investimentos do consumidor (JANNUZZI, 2000).
A postura do setor elétrico, que pretende transitar para soluções sustentáveis para o consumidor e para o ambiente, deve mudar, portanto, sob as transformações que estão presentes em termos de expansão das fontes, microrredes e digitalização, geração distribuída e armazenamento, além de almejar o mercado de serviços, especialmente os de conservação de energia. E as mudanças regulatórias precisam eliminar as distorções existentes entre compensações, subsídios cruzados entre geradores distribuídos e consumidores, reavaliando as bases da regulação, ajustando tarifas e incorporando medidas de eficiência energética, permitindo que grande conjunto de consumidores, inclusive aqueles que não são autoprodutores, possam capturar o conforto da eletricidade.
Como uma política energética ampla, no Brasil é importante uma medida que reduza o distanciamento da pobreza energética em que se encontra a população quanto ao consumo de eletricidade. O consumo per capita nem o consumo por unidade de PIB não permitem apreender a noção exata de crescimento humano e econômico (lembrem-se da manchete do Le Monde Économie de novembro de 2003: “O Japão melhora, os japoneses, bem menos”), referindo-se à distribuição de riqueza no país. Do ponto de vista da estruturação do setor elétrico não pode haver indiferença em relação às desigualdades contabilizadas pela concepção original e prevalecente do fornecimento de eletricidade como “bem-estar objetivo”, para melhoramento de qualidade de vida, da saúde social e para o desenvolvimento humano. As mudanças são imperativas.
Ivo Leandro Dorileo é membro da Sociedade Brasileira de Planejamento Energético
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