Transferências crescem, mas uma parte menor passa pelas lojas. No Brasil e em Mato Grosso, o mercado de veículos usados vive um movimento curioso: mais carros trocam de mãos, porém uma fatia cada vez maior dessas transações acontece fora das revendas tradicionais. O avanço das negociações diretas entre pessoas, impulsionado por anúncios online e grupos de mensagens, está redesenhando o mapa de forças do setor. Para o consumidor, a sensação é clara, apesar de todos os riscos inerentes ao negócio: comprar e vender sem intermediário parece mais rápido, simples e barato. Para as lojas, fica a conta de um fluxo menor, estoques mais exigentes e a necessidade de mudar o jogo no ambiente digital.
No dia a dia, o roteiro tem sido parecido. Um vendedor particular publica fotos, descreve o histórico básico, negocia pelo celular e combina a vistoria. O comprador se sente no controle do processo, testa o carro, acerta o preço e segue para a transferência. A tecnologia encurtou distâncias, removeu etapas visíveis e deu velocidade a uma rotina que, nos balcões de loja, costuma pedir documentações, aprovações e passos formais que consomem tempo. Quando a decisão é tomada em poucas mensagens, a paciência para filas e retornos demorados desaparece.
Há também o fator preço. Na negociação direta, o comprador acredita capturar “o melhor negócio”, e o vendedor confia que evitar comissões ajuda a sustentar o valor pedido. Some-se a isso, nas lojas, um ambiente de crédito ainda seletivo e caro, que dificulta propostas competitivas no parcelamento pelas lojas, e a balança pende para o encontro direto entre as partes. A percepção de autonomia e transparência — ainda que nem sempre corresponda à realidade — virou diferencial decisivo.
O perfil do Estado de Mato Grosso pesa. Com uma economia ancorada no agro, picapes, SUVs e utilitários são os campeões de procura e giram com força em redes de contato pessoais. Esse ecossistema favorece a liquidez entre conhecidos e conhecidos dos conhecidos, encurtando etapas e acelerando a decisão. Enquanto isso, parte das lojas ainda carrega cicatrizes do período de forte alta de preços no passado recente, quando comprar “carro caro” parecia inevitável. Hoje, o mercado ficou mais sensível ao valor e pune rapidamente estoques fora do ponto.
O resultado para as revendas é um choque de adaptação. Responder em minutos virou requisito, não cortesia. Processos longos, pedidos de documentos antes da hora e retorno moroso fazem o cliente “sumir” para fechar com um particular. No financiamento, quem não oferece alternativas práticas e taxas palpáveis perde terreno. E no estoque, o mantra é objetividade: entrar somente no que gira, reprecificar sem apego e liberar capital rápido quando um veículo trava. O luxo de esperar “o comprador certo” ficou caro.
Ainda assim, há uma avenida para as lojas que se reposicionam. O consumidor quer facilidade, mas também dorme melhor quando sente segurança jurídica, garantia por escrito, checagens técnicas confiáveis e revisão antes da entrega. Esses atributos, quando comunicados de forma clara desde o anúncio, reduzem a ansiedade e justificam o valor. Da mesma forma, explicar como a avaliação é feita, quais itens mais impactam o preço e entregar proposta na hora devolve previsibilidade à negociação e evita desgastes.
A virada passa por um atendimento realmente digital, de ponta a ponta. Conversas ágeis, linguagem simples, etapas visíveis e previsíveis. Fotos e descrição honestas, histórico coerente, quilometragem comprovada e custos totais explicitados — nada de surpresas na finalização. No crédito, parcerias inteligentes ajudam a compor pacotes com taxas mais simpáticas; quando fizer sentido, usar parte da margem para reduzir a parcela pode ser o empurrão que fecha o negócio. E, no portfólio, reforçar o “DNA de MT”: priorizar modelos de alta demanda local e exibi-los com qualidade.
Por que isso importa para além do balcão? Giro saudável de usados oxigena a economia, melhora a alocação de capital das famílias, movimenta serviços (vistoria, manutenção, seguros) e preserva empregos especializados. Num Estado de dimensões continentais, mobilidade acessível é peça-chave de produtividade. Se as lojas retomam relevância oferecendo valor real — velocidade, confiança e pós-venda — todos ganham: consumidor, setor e arrecadação.
O paradoxo do carro usado em Mato Grosso não é o fim das revendas; é um convite à reinvenção. O cliente já decidiu que quer rapidez e simplicidade. Cabe às lojas entregar isso — sem renunciar à proteção e da qualidade que só um negócio bem estruturado oferece. Quando esses mundos se encontram, a venda deixa de escapar para a conversa particular e volta a acontecer no lugar onde deve: onde o preço faz sentido, o processo flui e a confiança fecha a conta.
Ricardo Laub Junior é consultor de empresas e especialista em gestão
