O setor elétrico de um país é um dos aspectos mais importantes para determinar o seu crescimento e a qualidade de vida de seus habitantes. O sistema de produção e transmissão de energia elétrica do Brasil é um sistema hidro-termo-eólico de grande porte com predominância de usinas hidrelétricas. De acordo com a EPE-Empresa de Pesquisa Energética, cerca de 83% da energia elétrica no país em 2019 foi proveniente de fontes renováveis enquanto nos outros países da OCDE-Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico estão na faixa de 26%, tendo a fonte hídrica a maior participação com cerca de 63%, a eólica com 10%, a Biomassa com 8% e a solar fotovoltaica com menos de 2%. O restante é representado pelas térmicas a gás, a óleo diesel, a carvão mineral e nuclear, ditas não renováveis, representando cerca de 17%. Estes percentuais de geração hídrica e térmica podem variar em função da falta de água dos reservatórios das grandes hidrelétricas, necessitando de uma maior geração de térmicas.
O conjunto de vários fatores é que contribui para a existência de um bom sistema elétrico. No caso, é a capacidade de geração por várias fontes associada a um sistema interligado composto de várias linhas de transmissão que interligam as várias regiões do país que possibilitam maior confiabilidade, continuidade, estabilidade, flexibilidade e segurança operacional. Temos robustez e flexibilidade operacional no sistema de transmissão e uma matriz de geração renovável e diversificada.
Neste momento discute-se muito a crise hídrica e seus rebatimentos no setor elétrico brasileiro. O questionamento que se faz é se esta crise atual poderia ter sido prevista e como poderia ser evitada. Difícil prever uma situação como esta, pois vários fatores podem contribuir para isso, além de estarmos diante da pior crise hidrológica dos últimos 90 anos, uma crise sanitária sem precedentes e cenários econômicos que oscilam bastante. Porém, caso o O N S-Operador Nacional do Sistema tivesse dentro dos seus recursos disponíveis de previsão uma sinalização consistente de riscos para 2021 e se utilizado de usinas térmicas de forma adequada, colocando em operação as de custo menor, essa ação poderia ter reduzido bastante os riscos atuais e com menor impacto financeiro para os consumidores. Com certeza agora os níveis dos reservatórios estariam bem mais altos e a crise hídrica menos preocupante.
Já a alguns anos, mais especificamente a partir de 2013, em especial 2014 e 2015 a redução dos volumes de água nos reservatórios das grandes usinas hidrelétricas começou a se acentuar de uma forma mais rápida. O país depende muito destas usinas para a geração de energia elétrica e como tivemos o último verão muito ruim de chuvas principalmente nas principais bacias do Sudeste/Centro Oeste que armazenam cerca de 70% da água do país para geração de energia, houve um maior agravamento da situação hídrica, aliado por dificuldades ambientais para se construir novas hidrelétricas com reservatórios maiores nos últimos vinte anos. O período de abril a novembro, dito período seco ou de estiagem, é o período em que os reservatórios recompostos pelas chuvas deveriam ter água em volume suficiente para garantir o suprimento de energia elétrica ao país até o início do próximo período chuvoso que se inicia em fins de novembro. Mas já a alguns anos, as usinas térmicas têm sido acionadas neste período como uma espécie de “seguro” com mais ou menos intensidade para compensar a falta de chuvas em ciclos hidrológicos desfavoráveis que vêm se intensificando. Outros tipos de fontes foram sendo inseridas na matriz de geração nos grandes leilões nacionais de energia.
As grandes usinas hidrelétricas juntamente com as grandes usinas térmicas são chamadas usinas de base pois podem estocar os recursos para gerar energia, proporcionando maior segurança energética ao país. Já as usinas ditas complementares ou intermitentes como as eólicas e solares, apesar de serem muito importantes dependem da disponibilidade de vento e da radiação solar. Afim se se afastar os riscos desta crise muitas ações foram feitas no setor elétrico nos últimos anos obedecendo um planejamento com base no mercado previsto: expansão e reforço do sistema de transmissão, mais oferta na capacidade de geração térmica, eólica, solar, biomassa e PCHs. Porém, pode-se melhorar, o atual modelo do setor é muito antigo, precisa de ajustes. Teria que abrir mais o mercado de energia e se fazer algumas mudanças nos leilões nacionais de energia. A tão propagada modernização do setor elétrico está parada no Congresso Nacional. A separação da capacidade ou lastro, da parte da energia propriamente dita, permitiria a contratação de forma separada. O lastro seria pago por todos os consumidores e a e energia seria comercializada livremente, gerando maior competição e oferta.
Com a crise hídrica fala-se muito na possibilidade de um racionamento de energia e se o acionamento de termoelétricas são as medidas mais acertadas para enfrentar esta situação. A situação é preocupante, mas as dificuldades se bem enfrentadas e administradas podem ser superadas. Medidas do lado da oferta de energia e do lado do consumo (demanda) devem ser providenciadas antes de qualquer coisa. Primeiramente, deve-se trabalhar no lado da demanda, na resposta do consumidor, na sua conscientização para reduzir o consumo de forma voluntária, principalmente os grandes consumidores do setor industrial com estímulos e incentivos para isso. Também deslocar parte do consumo para fora do horário de pico (horário de maior consumo de energia no país). O uso racional da energia neste momento é fundamental. Conseguir deslocar de horário um certo montante de energia é bem mais barato e rápido do que construir novas usinas.
No lado da oferta, o ONS deve acionar de forma compulsória a reserva estrutural disponível de usinas térmicas, das menos caras para as mais caras, por ordem de mérito como se preconiza, bem como os órgãos competentes devem realizar uma boa gestão dos recursos hídricos, de forma a se evitar um racionamento, que seria muito danoso para a sociedade em geral. As usinas termoelétricas compostas por usinas a gás, carvão mineral e óleo combustível possuem um custo de operação e produção muito alto quando comparadas com as hidrelétricas, além de serem mais poluentes, trazendo, portanto, mais problemas ao meio ambiente.
Apesar de toda esta situação preocupante, penso que os riscos de um possível racionamento podem ser contornados e afastados. Porém, riscos de blecautes ou apagões merecem mais atenção no setor elétrico devido ao intenso uso dos sistemas de transmissão de energia transportando grandes montantes de energia para o intercâmbio de energia entre as diferentes regiões do país em que as várias bacias podem ser otimizadas, e sendo necessário, uma região com reservatórios mais cheios envia mais energia para outra que esteja com reservatórios mais depreciados ou mais vazios. Esta é uma vantagem da flexibilidade do Sistema Interligado Nacional-SIN, porém em situações limite como agora, qualquer problema nestas linhas geraria grandes repercussões, gerando efeito cascata de desligamentos de cargas, denominados blecautes ou apagões que podem ser de curta ou de longa duração dependendo da severidade da contingência.
Mas afinal, ocorrendo um racionamento de energia, o que isto implica na vida das pessoas? Significa restrições ao uso da energia elétrica em sua forma plena pelos consumidores, trazendo muitos prejuízos e transtornos. Um possível racionamento impactaria o setor produtivo, como comércio, serviços, indústria e o setor rural, que atrasariam ou segurariam seus planos de investimentos. Isto seria muito ruim para a economia inclusive com repercussão nos empregos num momento que o país precisa gerar empregos. No setor residencial, seria algo que obrigaria os usuários a alterar suas rotinas, gerando muita insatisfação.
E a conta para os consumidores de energia, eles pagarão mais caro, como tudo isto afeta os mesmos? A previsão é de custos de operação e produção extremamente altos para o consumidor durante todo o segundo semestre de 2021. A bandeira vermelha no patamar 2 a R$ 6,24 para cada 100 kWh deve permanecer até novembro deste ano, onerando ainda mais a conta do consumidor que também estão tendo as tarifas reajustadas. Aqui no estado a energia foi reajustada na média em 8,90% em 22 de abril deste ano. A ANEEL-Agência Nacional de Energia Elétrica através de seu diretor presidente admitiu recentemente que poderá aumentar em mais de 20% o patamar mais alto das bandeiras tarifárias (vermelha patamar 2), pois já haveria neste ano um déficit de cerca de R$ 1,5 bilhão na conta das bandeiras, e tendo ainda todo o segundo semestre pela frente com uma operação do sistema elétrico com custos muito elevados para o consumidor. Logicamente haverá um maior gasto do consumidor de energia e também quando ele adquirir bens e serviços que estarão com custos da alta da energia embutidos pelos fornecedores e fabricantes. Então o consumidor acaba pagando de todas as formas. A energia mais cara gera inflação e encarece toda uma cadeia de consumo em geral.
E esta crise poderia ser comparada à “crise do apagão” ocorrida entre julho de 2001 e fevereiro de 2002? Penso que não, são bem diferentes as mesmas. Em 2001 cerca de 85% da energia elétrica gerada era de origem hídrica e por isto existiam poucas usinas térmicas, portanto maior dependência das hidrelétricas. Hoje esta geração hídrica representa bem menos, cerca de 63% e existem muito mais usinas térmicas para serem acionadas. Atualmente estas térmicas já chegaram a gerar cerca de 25% da energia do país em alguns horários. A uns 15 anos atrás as térmicas respondiam por menos de 12% da matriz de geração. Aliado a isto houve nos últimos anos uma maior diversificação da matriz de geração de energia com a entrada em operação de usinas eólicas e solares. Estas duas fontes já representam cerca de 12% atualmente da matriz de geração do país. São mais baratas, de construção mais rápida e com menos impacto no meio ambiente, devem, portanto, continuar a serem implementadas e estimuladas. Então, o sistema elétrico hoje está mais preparado, mais robusto e mais diversificado do que era em 2001/2002.
E quanto aos investimentos, sempre se levanta esta questão se faltaram investimentos para chegarmos nesta crise atual. Entendo que não necessariamente e explico:
Houve crescimento e expansão da oferta de energia ao longo dos últimos anos em linha com os Planos de Expansão da EPE. A EPE faz um bom trabalho de planejamento. O mercado sinaliza quanto vai precisar de energia ao longo dos anos e a EPE implementa as ações para atender à demanda prevista. Trata-se de uma autarquia ligada ao Ministério de Minas e Energia, que elabora todos os estudos de geração e consumo no setor e que define as obras que necessitam de serem executadas para atender a expansão do mercado ao longo dos anos, para garantir o suprimento de energia. Já o acompanhamento de curto prazo é feito pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico-CMSE, órgão colegiado constituído no âmbito do Poder Executivo, sob a coordenação direta do Ministério de Minas e Energia, responsável pelo acompanhamento e avaliação permanente da continuidade e da segurança de suprimento eletro energético em todo território nacional.
Acredito que a energia elétrica requer uma grande discussão nacional que deve envolver toda a sociedade de forma transparente para combinar com equilíbrio, o crescimento do mercado, a segurança energética, a segurança operacional, a sustentabilidade, a diversificação da matriz de geração e o custo da conta de energia pois o princípio sempre é o da modicidade tarifária, ou seja, os investimentos tanto na geração, transmissão e distribuição de energia devem ser prudentes pois são remunerados via tarifa na conta do consumidor. Já temos uma conta de energia muito cara boa parte influenciada por tributos, encargos e subsídios diversos. Para se ter mais segurança com menos riscos, mais investimentos seriam necessários e, portanto, mais cara ainda ficaria a conta.
Adicionalmente, um outro grande desafio também será a operação do sistema elétrico poder otimizar e acomodar com eficiência todas as fontes intermitentes (eólicas e solares, por exemplo) e as despacháveis ou de base (hidrelétricas e termoelétricas), realizando um mix ideal na combinação destas tecnologias em um sistema integrado, bem como adotando novas tecnologias de armazenamento de energia, eficiência energética, visando sempre uma ótima resposta em regime normal e frente a distúrbios/contingências, além repassar os custos justos para os consumidores.
Por fim, não podemos “culpar” a natureza por este período extremamente severo de estiagem. A água é uma grande aliada para geração de energia elétrica, além de sua utilidade no consumo da água propriamente dito, irrigação na agricultura, navegação e lazer. A nossa responsabilidade diante desta crise só faz aumentar e refletir sobre a necessidade de preservar os nossos recursos naturais, com preservação e sustentabilidade na sua utilização e diversificar mais a matriz de geração de energia com outras fontes renováveis, tornando-nos menos dependentes de ciclos hidrológicos sempre favoráveis. As gerações futuras agradecem!
Teomar Estevão Magri, Engenheiro Eletricista com MBA em Gestão de Negócios, Especialista e Consultor em Energia, membro do Conselho de Consumidores de Energia Elétrica de Mato Grosso-Concel MT.
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