A peregrinação humana à procura de energéticos que satisfaçam suas necessidades deixa rastros na natureza e cujas retiradas já estão atingindo os limites de produtividade dos ecossistemas. As fontes de energia primária como o petróleo e o gás natural possuem nas suas áreas de suprimento as reservas de produtividade técnica associadas ao potencial de exploração e a uma política energética que busca a autossuficiência e a segurança de fornecimento.
Ao descobrir gás natural offshore o Brasil passou a contar com uma fonte extraordinária, fundando novas relações de produção energética no país. Juntamente com a indústria do petróleo, logo foi instalada a noção de que o crescimento da produção apoiaria o desenvolvimento social da população e, obviamente, a implantação da linha energética que levaria a energia primária à final utilizada pela sociedade, numa grande revolução na matriz energética. Mas, o que é feito do gás natural?
Hoje o volume da produção doméstica é de 112 milhões de m³/dia. Um dos principais problemas que enfrentamos em relação ao consumo do gás natural é a sua disponibilidade para a demanda das pessoas, ainda dependente de derivados de petróleo, representando um energético de transição para uma nova era de novas fontes e domínio de renováveis. Do consumo total final energético do país 7,8% são gás natural, partilhados em 32,9% para a geração elétrica, 28,3% para a indústria, e 7,7% para os outros setores como o comercial, o residencial e transportes, de acordo com o Balanço Energético Nacional 2019.
O restante do consumo total final cabe aos derivados de petróleo com 36,3%, 19% à eletricidade e 36,9% para outros combustíveis.
A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) projeta que na década de 2020 o uso energético do GN passará de uma participação de 85,2% para 83,2% na sua estrutura de consumo. Com robusta parcela de destinação para as termelétricas e pequenos acréscimos em outros setores da economia, residências, comércio e indústria não consumirão muito mais, postergando uma ótima oportunidade de transporem-se para uma nova matriz.
No contexto de infraestrutura é necessário implantar, entre outros, o gasoduto Sudeste-Norte já autorizado, ampliando a malha integrada nacional, e a construção de terminais de regaseificação de GNL previstos no Plano Decenal de Expansão 2029. Outra medida é aumentar o fornecimento de gás natural para os setores residencial, comercial, industrial e transportes, lembrando que 90% das plantas de produção estão no sudeste e nordeste com cadeia completa de fornecimento.
No entanto, na maior parte dos municípios do interior não existe um metro de rede de dutos interligados aos sistemas produtores e gasodutos. A comparar com o gás liquefeito de petróleo (GLP), concorrente do GN, com infraestrutura predominante através de transporte rodoviário, a política sustentável para o gás natural está longe de garantir sua disseminação e de fazê-lo alcançar confiabilidade e atratividade.
Na atualidade 97% do gás natural são consumidos nas regiões sudeste, sul e nordeste. Na perspectiva da estratégia para disponibilização do gás, além daquelas medidas, a reavaliação das políticas e dos respectivos mercados dos sistemas isolados do centro oeste, norte, de Uruguaiana, RS, e do Maranhão, na bacia do Parnaíba, também deve ser parte importante do planejamento da expansão, considerando-se projetos âncora no médio prazo.
Na realidade vivenciamos uma etapa em que é preciso saber distinguir combustíveis mais eficientes (no sentido lato da palavra) para os serviços de energia que requeremos, inclusive retirar e usar, conscientemente, o dote energético do gás natural.
Então, o Brasil vive um problema de conversão energética e não de fontes. A questão é desenvolver os fluxos de energia destas fontes economicamente em formas utilizáveis, numa cadeia de infraestrutura muito bem coordenada em qualidade do energético, na concordância de lugar (localização do suprimento, transporte e distribuição) e na concordância de tempo (suprimento contínuo para atendimento à demanda). A Lei do Gás Natural, de 2009, aspirou a mudanças que não se concretizaram e o mercado patinou fortemente, sem o devido amparo da legislação.
O professor Edmilson Moutinho, da USP, já advertiu, há alguns anos, que para a construção de uma “Civilização do gás” é imprescindível “um processo revolucionário de criação de conhecimento, tecnologia e cultura gasífera que favoreça a penetração do combustível em usos finais legítimos como a energia térmica e a força motriz” e que, sem ele “o desenvolvimento dos mercados gasíferos torna-se de alto risco”. Ele alerta também que “o financiamento de gasodutos e toda a infraestrutura associada à produção, transporte, distribuição e uso final do gás também se torna difícil e inibidor ao processo de estruturação”. Há um grande desafio pela frente!
No nível global com impacto local, uma das iniciativas, lançada em 2017, é o Clean Energy Transitions Programme da Agência Internacional de Energia (AIE) que apresenta um esforço ambicioso para acelerar as transições globais de energia renovável. O programa oferece apoio independente e de ponta aos governos cujas políticas energéticas influenciarão significativamente as perspectivas e a velocidade da transição global para uma produção e uso de energia mais sustentáveis, com prioridade para o Brasil, África do Sul, Indonésia, Índia, México e China. Para o Brasil o gás natural tem papel relevante neste processo, integrando-se às ações propostas pela AIE de compartilhamento de experiências internacionais em leilões de eficiência energética, treinamento de profissionais da indústria e de universidades, inovação e novas políticas.
É muito fácil perceber que o gás natural combina, é harmonioso com a transição da matriz energética e com os diversos usos finais que beneficiam a sociedade. Ele é um combustível de ótima eficiência na cadeia energética e vetor de desenvolvimento, extensível a todos os setores da economia e ao conjunto de toda a sociedade, além de representar uma mobilização essencial dos recursos fósseis no país. Como componente de uma estratégia mais global o GN precisa de efetividade em relação às metas do PDE 2029 e do programa “Novo Mercado do Gás”, bem como, do recrudescimento da Lei do Gás, sem repetir, mesmo com particularidades e em contextos diferentes, o erro praticado com o programa do álcool de sua marcha à ré em tempos recentes.
Ivo Leandro Dorileo é Presidente da Sociedade Brasileira de Planejamento Energético – SBPE